Amazonas brasileiras ? Os discursos do possível e do impossível.
Texto publicado no original em francês : « Recherches qualitatives, vol.19, 1999, Université du Québec à Trois Rivières, Québec, Canadá » Amazonas no Brasil ? Esta pergunta poderá provocar sorrisos incrédulos, talvez sardônicos em expressões sérias, “academicamente corretas”. Questão despropositada ou apenas uma brincadeira? Este tema, entretanto, será o fio condutor para a tarefa que aqui me proponho: a decodificação dos sentidos que circulam enquanto verdades ou mentiras em formações sociais singulares, que tornam certas questões pertinentes e outras risíveis , descartáveis.. Não procuro assim uma realidade perdida ou nunca encontrada, nem a prova da existencia das Amazonas no Brasil, mas a significação que pode ter a possibilidade de sua existência. Mas o que é o real? Claude Gilbert Dubois [1] afirma que o real é o imaginário que se impõe como tal, que apaga toda possibilidade de existência fora de seus limites. Ou seja, são as representações do mundo que o instituem enquanto realidade definida. A subjetividade inexorável de toda leitura e produção textual afasta a possibilidade de uma única certeza no discurso histórico em relação aos referentes reais. A História, ficção? [1] Sim e Não. Sim , na medida em que os traços do factual são mediatizados pela interpretação, com a intensa participação da imaginação do historiador(a) ( Duby); não pois os indícios são os signos que pedem a decodificação e o peso de sua materialidade indica certos caminhos. Assim, temos a História, um discurso dotado de historicidade, oriundo de uma certa realidade que marca suas condições de produção específicas que delimitam as representações feitas sobre o mundo, no mundo, conferindo-lhe o selo de História-realidade ou História-ilusão. Falar assim das Amazonas no Brasil é um pretexto para falar da construção de gêneros na História que funda as tradições e inaugura a memória dos fatos que são considerados como possíveis ou totalmente evacuados da ordem do real. Régine Robin denomina “sociograma” esta grade analítica que transforma em discurso interpretativo a realidade percebida do mundo. Este sociograma, segundo a autora, “é uma concretização, uma atualização do imaginário social em sua indecidabilidade […] que não cessa de se transformar,[…] por precipitação, no senso químico do termo, deixando resíduos do tipo ‘clichê”, doxa, estereótipo , ou por acrescentar novos elementos, por mudanças de lugar, enfim, pela evolução de uma estrutura aberta. (Robin,1995:58-59) Assim, a História- interpretação parte de um sociograma dado, o do presente, da atualidade, para tentar iluminar os sentidos que percorrem o horizonte de significação do passado. Em sua pluralidade e em sua rede de especificidades geográfica e temporal, os sentidos indicam as possibilidades do real. Impossível a existência das Amazonas? Impossível porquê e quando? O caminho indicado por Foucault, da inversão das evidências tem uma outra face, a da inversão das impossibilidades. Quem fala, em que situação, à quem e de que lugar de fala? ( Foucault , ordre) A historiadora feminista tem portanto, como tarefa, não somente auscultar os silêncios da história, mais igualmente observar a proliferação dos discursos e seus sentidos plurais - o dito - que nos indicam suas condições de produção nas representações sociais e de gênero. O possível e o impossível se encontram assim re-desenhados na talagarça da História que conhecemos e na qual cremos . Pois como se sabe, o que a História não diz, nunca existiu. Ao menos na ordem do discurso do verdadeiro, do possível. Mas de onde vêem as certezas em relação ao verdadeiro e ao falso, ao ilusório? As constelações de sentidos, as condições de possibilidade de enunciação e de representação, os regimes de verdade são formulações diferentes para explicar os esquemas de análise e de produção do discurso sobre a realidade, histórica ou outra qualquer. Maffesoli, comentando a lógica das relações sociais ( Maffesoli,1985: 69) sublinha que « não poderia se confundir com a construção dedutiva que nos faz indicar identidades às pessoas , às coisas, às situações.” No domínio das relações humanas são as representações paradigmáticas que estabelecem as margens, os limites , as exclusões. A existência das Amazonas não foi sempre colocada em dúvida, como veremos. Nesta ótica, é importante sublinhar aqui a noção de razão histórica ( Moriconi) que atravessa as ciências sociais atualmente; esta noção indica a incontornável historicidade de toda ação, pensamento ou disciplina cujas raízes se encontram solidamente ancoradas no solo que as alimenta, realidade em um momento, ficção no instante seguinte. Inapreensível realidade, como fazer sua história? A análise das práticas discursivas e de suas condições de produção, da problemática (Foucault, 1984; Introduction) que se esboça a partir de uma temática dada, envia-nos à noção de uma história mais global, já que singular : a história de um lugar de significação. A dimensão evolutiva da história é assim descartada; o interdiscurso, entretanto, contém os núcleos imaginários / representacionais que podem se atualizar a todo momento, em redes de sentido dissemelhantes, das quais dependem sua força e sua pregnância. Assim encontramos nas Amazonas um núcleo imagético que se reproduz ao longo dos séculos com uma relação totalmente diferente em relação à realidade de sua existência e ação no mundo. Do século XVI ao XX as Amazonas foram traduzidas sob forma de fantasia, irrealidade, impossibilidade ou simplesmente como resultante de um defeito biológico ou de caráter em certas mulheres. Eni Pulcinelli Orlandi explica que “dar um sentido é construir limites é desenvolver domínios, é descobrir lugares de significação, é tornar possível os gestos de interpretação.” » (Orlandi, 1993 : 15) Mas qual seria a importância de falar de Amazonas brasileiras neste lugar e tempo de tantos feminismos, de tantas ações cujo alcance político pode ser imediato e concreto ? Ora, o gênero, como sugere Joan Scott, ( Scott, 1988) é uma referência decisiva na instauração do poder político, no domínio do institucional e do simbólico. A distinção binária de gêneros atravessa o discurso social, do senso comum à filosofia, dando lugar assim às posições de poder, hierarquizadas e assimétricas. Neste sentido, o imaginário constrói os papéis sexuados em torno da norma e gera a instituição do social, como sugere Castoriadis : (Castoriadis,1988: 366) « A instituição do social é instituição de significações imaginárias sociais que deve, por princípio, conferir um sentido à tudo que pode se apresentar na sociedade como ‘fora’desta. A significação imaginária social faz as coisas serem tais coisas, coloca-as como sendo o que elas são - o ue sendo definido pela significação que é indissociavelmente princípio de existência, princípio de pensamento, princípio de valor, princípio de ação. » A imagem das Amazonas assombra o imaginário social em sua negação absoluta da norma e sua incorporação progressiva ao domínio do ilusório de do mítico assegura cada vez mais uma ordem patriarcal e masculina e heterossexual, onde os valores e as qualificações do feminino se centralizam à reprodução, logo, à maternidade. A exclusão das Amazonas do campo do racional e do conhecimento retira do imaginário sua existência enquanto brecha na ordem do falo e da dominação masculina ; contribui desta forma , à instauração de práticas normativas e institucionais de polarização de gêneros, baseadas no conceito do “natural”, do biológico determinante, de irresistível atração entre os sexos opostos, única trilha do possível. No discurso do conhecimento “verdadeiro”, do conceito unificador que desvela a essência dos seres contida na natureza, o feminino é o irracional, o passivo, o obscuro, o frágil, o dependente, o desamparado, acompanhado de uma fraqueza moral que se revela irresistível tendência ao mal. .( Delumeau, 1978 : chap. V) Ora, na ordem do imaginário ocidental, as Amazonas SÃO o irracional, o fantástico, a impossível realidade de mulheres em um mundo sem homens. Antítese das “verdadeiras”mulheres, as Amazonas são guerreiras, ativas, fortes e bravas. Independentes, homossexuais talvez, matadoras de homens, seriam elas a encarnação do mal latente no feminino? Seria seu mundo a ordem invertida da natureza que apela à destruição para o asseguramento do natural? As Amazonas brasileiras aparecem no século XVI como o último avatar das imagens das mulheres guerreiras entre os Pictos, os Celtas ,( Markale, 989 ) , das rainhas guerreiras como Bodiceia, Artemísia, Atalie. [2] Herdeiras das Fúrias gregas, guardiãs do fogo sagrado das deusas, quem são elas? Enviadas sem cessar ao mito, à economia do impossível, seus corpos poderosos são uma imagem livre e invertida das mulheres agrilhoadas à sua “natureza” procriadora e fraca que aos poucos reduz seu lugar e seu papel no mundo. [3] Com efeito, os espanhóis, como Francisco Orellana relatam seus encontros com as Amazonas, suas lutas e suas derrotas, mas estas narrativas não são levadas a sério; tudo se passa como se, aprisionadas pela ordem do discurso, as Amazonas aparecessem como seres míticos para melhor reafirmar a ordem e a dominação masculina do mundo. Neste sentido, a heterossexulidade compulsória, face encoberta da “natureza”generizada do humano é reforçada pelo selo da impossibilidade que marca a existência das Amazonas, mulheres sem homens. Assim os discursos na ocasião do descobrimento do Brasil e os que se seguem enquanto intérpretes ou comentadores apresentam, segundo suas condições de produção e percepção do mundo, representações diferentes sobre as Amazonas. Todos, entretanto, estarão confrontados com a homossexualidade de índias e índios, da qual apenas entreabem os lábios para falar. Se a imagem é a do bom selvagem, como pensá-lo homossexual? A natureza não é mais o que era, diriam alguns.Como a nostalgia dos bons tempos, da boa ordem do mundo onde um homem era um homem e uma mulher uma fêmea . Na verdade, a nostalgia e a perplexidade circundam os discursos sobre as Amazonas e os costumes selvagens: onde estão as certezas passadas, as crenças inquestionáveis? Os cronistas do século XVI tecem seus relatos em torno do olhar, descrevem o que vêem e é o estranho e o maravilhoso. ( Todorov, 1977) que inundam esta visão. O estranho, identificável pela reflexão e o maravilhoso, urdido pelo sobrenatural, inexplicável desde sempre e para sempre. A aventura na qual se embarcam na busca do re-conhecimento é o locus ideal da epifania do maravilhoso e do abominável que marca a natureza e a humanidade nestas terras desconhecidas. As índias e os índios estão também marcados por esta ambiguidade, antropófagos, homossexuais, mais livres e nus, uma nudez perversa e ah! tão desejada! Os índios do Brasil conheciam poucas restrições sexuais e fator de grande interesse para os estudos sobre o gênero, as categorias mulher / homem não eram definidas a partir do sexo biológico. Neste sentido, como apontam Nicole Claude Mathieu et Judith Butler, é a experiência do gênero que constrói o sexo.( Mathieu e Butler) Com efeito, podia-se escolher o pertencimento a um ou outro grupo e exercer sua sexualidade segundo o desejo de cada indivíduo. O homossexualismo era uma prática como qualquer outra e não correspondia a nenhuma forma de exclusão, como pode-se ver ainda hoje em algumas ilhas do Pacífico. Gabriel Soares de Souza, cronista e colonisador , mostra-se indignado por estas práticas e fala apenas dos homens: "[...]são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta;e o que serve de macho, se tem por valente e contam esta bestialidade como proeza; e nas suas aldeias pelo sertão, á alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas." ( Souza, 1971 ; 308) Falar nunca é um ato neutro: falar é significar, trazer à comunicação valores , preconceitos e representações de gênero do emissor. Este discurso, entretanto, desenha imagens , cuja historicidade mesmo quebra os moldes dos paradigmas. Gandavo, ainda no século XVI tem um outro tipo de discurso onde aborda, rapidamente, um assunto extremamente constrangedor, a tal ponto que deixa a impressão que escreve ruborizondo: "Algumas indias ha que tambem entre elles determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consetirão ainda que isso as matem. Estas deixam todo exercício de mulheres e imitam os hoeme e seguem seus ofícios, como senam fossem femeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e frechas, e à caça perseverando sempre na companhia dos homens e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz he casada , e assi se comunicam e conversam como marido e mulher." Gandavo, 1964; 56-57) A escolha entre ser mulher ou homem aqui aparece de forma clara: se a mulher decide ser um homem será considerada e aceita como tal. O indivíduo escolhe seu gênero, seu papel sexuado na sociedade , o exercício de sua sexualidade e a direção de seu desejo e seu papel social assim se instala. Não havia imposição “natural” ou compulsão social à heterossexualidade. Os discursos positivistas sobre a evolução ou sobre a selvageria não reduzem a importância destes relatos, cuja materialidade real nos escapa. Sua razão histórica, sua historicidade, a emergência na literatura do século XVI de uma sociedade cujos membros podiam escolher o gênero ao qual queriam pertencer constitui um acontecimento, uma ruptura na ordem do discurso. É uma brecha que se cria em nível de imaginário e abre os horizontes do possível na história e das transformações paradigmáticas do presente. A existência das Amazonas insere-se perfeitamente neste quadro e os relatos dos índios sobre estas mulheres que viviam entre si, sem necessidade ou apêlo aos homens, intrigam e perturbam os cronistas. No século XVI, as mulheres haviam sido desalojadas, em grande parte, da vida política e econômica na Europa. No imaginário cristão que se tornava hegemômico na época as mulheres eram representadas como seres mentalmente, moralmente e fisicamente frágeis. ( Delumeau, 1978) Mãe, santa ou demônio, estas classificações não podiam suportar a imagem de guerreiras, de mulheres fortes e independentes, capazes de lutar, matar e assegurar sua sobrevivência na floresta. Os cronistas caminham entre o maravilhoso e a terra firme de suas representações. O maravilhoso aparece … para melhor desaparecer, para melhor assegurar o ordenamento do mundo, seus valores e suas imposições. Os cronistas falam muitas vezes de mulheres guerreiras, que participavam das lutas contra os europeus. Selvagnes, mas ainda assim mulheres, que partilhavam a vida dos homens, normais, enfim. Gandavo explica que entre os Aymorés, "[...]As mulheres trazem huns paos tostados com que pelejão." ." (Gandavo, 1964; 77) Explica em seguida que este povo é um dos mais ferozes e selvagens: "[...]não têm rosto direito aa ninguém, senão a traição fazem a sua[...]Esses índios não vivem senão pela frecha, seu mantimento eh a caça, bichos e carne humana ( idem) Mas as Amazonas fazem parte de uma outra espécie, mulheres sem homens, indomáveis, ferozes, que semeaim o mêdo em torno delas. Enviadas ao maravilhoso, as Amazonas tornam-se possíveis aos olhos dos colonizadores, pois este maravilhoso tinha um lugar essencial no mundo do século XVI, mesmo que fosse apenas para melhor defender a ordem do “real”. A aproximação feita pelos cronistas em seus discursos entre as guerreiras indígenas e as Amazonas gregas instaura um contrato veridictório ambíguo com seus receptores de épocas posteriores, na medida o real apresentado é imediatamente conduzido à dimensão do mítico, do fabuloso, do ilusório. Assim, as Amazonas tornam-se seres improváveis, impossíveis, pois escapam ao “natural”, à ordem do divino e à instituição do humano. Thévet explica longamente a origem das Amazonas brasileiras, descendentes de Pentesiléia, dispersadas no mundo depois da guerra de Tróia ou sobreviventes das Amazonas da África. ( Thévet, 1983; 167 )Mas parece crer em sua existência e descreve seus costumes, habitat, alimentação, etc. "[..] elas vivem separadas dos homens , e só raramente estão juntos[...] este povo habita em pequenas cabanas ou cavernas nos rochedos, vivendo de peixe ou de alguns animais selvagens, raízes ou de frutos nativos. Matam seus filhos machos assim que nascem[...] se é um menina guardam-nas com elas exatmaente como as primeiras amazonas faziam. Normalmente elas guerreiam contra algumas nações [...] Quanto aos prisioneiros elas os matam com suas flechas e não os comem como os outros selvagens, mas os queimam até que sejam reduzidos a cinzas." ( Thévet, 1983; 167 ) Gabriel Soares de Souza ."( Souza, 1971; 337 )alude igualmente aos combates travados entre estas guerreiras e o grupos do Ubirajaras: "[...]são muito temidos pelos amoipiras, com os quais tem guerra por uma banda e pela outra, com umas mulheres que dizem tër uma só teta, que pelejam com arco e flecha, e se governam e regem sem maridos, como se diz das amazonas; dos quais não podemos alcançar mais informações, nem da vida e costumes destas mulheres. Thévet narra também o encontro dos espanhóis com as guerreiras: "[...] nossos peregrinos não haviam parado senão o necessário para se repousar e buscar alguns víveres, porque estas mulheres tão admiradas de vê-los com aquele equipamente que lhes era tão estranho reuniram-se logo de 10 a 12 mil em menos de tres horas, meninas e mulheres nuas, mas com arco e flecha na mão, gritando como se tivessem visto seus próprios inimigos[...]ao que não quiseram resistir e em seguida se retiraram com sua honra preservada." (Thévet, 1983; 167/168) Con efeito, se na ordem do discurso do século XVI as guerreiras são reconduzidas à filiação da antiguidade não é para colocar sua existência em dúvida, mas ao contrário, para reafirmá-la nas comparações efetuadas. Discurso ambíguo, entretanto, pois se alguns valores da antiguidade grega se reatualizavam à época, o percurso do racional se opunha ao um discurso impregnado pelas cores do mito. O maravilhoso que atravessa as representações cria um espaço possível para a existência de mulheres cujo modo de vida dispensa a presença e a companhia dos homens. Mas o maravilhoso não abriga o natural e o Outro só aparece para reafirmar a identidade o Eu, do Nós. Ò estranho ( neste caso o Brasil) poderia perfeitamente abrigar o bizarro ( as Amazonas), pois no domínio da alteridade as representações de gênero não transtornam a ordem do poder e das hierarquias no imaginário social. Em um outro quadro temporal, no século XVII, Condamine, que navegou pelo Amazonas, também discorre sobre as mulheres guerreiras: "[...] ao longo de nossa navegação havíamos perguntado aos índios de diversas nações [...] se eles tinham conhecimento destas mulheres belicosas que Orellana teria encontrado e combatido.[...]" Acrescenta que as informações "[...] tendem a confirmar ter havido neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, sem ter homens com elas. " ( Condamine, 1981; 84 ) Condamine acrescenta vários testemunhos, entre os quais de um dos governadores espanhóis, sobre a existência destas mulheres que “não tinham marido”e se inquieta a respeito da localiza’~ao geográfica deste povo no mundo conhecido à época. O autor, no cerne do espírito racionalista do século XVIII tenta combinar os testemunhos e a dúvida plantada em seu espírito pelas suas representações de gênero: "[...]o que me parece mais possível do que todo o resto é que elas tenham perdido com o tempo seus antigos usos, seja porque tenham sido subjugadas por uma outra nação, seja porque, cansadas da solidão, as jovens tenham finalmente esquecido a aversão de suas mães quanto aos homens." ( Condamine, 1981; 87) Assim, mulheres “sós” e “aborrecidas”sem a presença masculina é uma idéia extremamente difundida e que se perpetua no interdiscurso até nossos dias, cujo enunciado é sua própria evidência. Os homens, por sua vez, entre eles, se divertem, criam, trabalham. Tais representações resultam em práticas sociais onde as mulheres vivendo entre elas só podia revelar uma anormalidade biológica e social. A dúvida metódica entra nas considerações de Condamine: “se, para negá-lo, alega-se a falta de verosimilhança e a espécie de impossibilidade moral que haveria em que uma república de mulheres deste tipo possa ter se estabelecido e subsistido, não insitirei sobre o exemplo das antigas amazonas [...] já que o que lemos nos historiadores antigos e modernos é , no mínimo matizado de fábulas e sujeito à contestação."( Condamine, 1981; 88 ) Este já é um discurso da época clássica, que se pretende científico e reafirma seus argumentos expondo-os, sem entretanto adotá-los de maneira decisiva: impossibilidade moral, falta de verossimilhança. Trata-se portanto de um simples recurso retórico que apela à adesão do leitor, em seu quadro de representações do século XVIII, no qual as mulheres perdiam ainda mais espaço e direitos civis. Depois de dois séculos de transformações sociais criadas pelos europeus, Condamine estima que [...]se algum dia houve amazonas no mundo, é na América, onde a vida errante das mulheres que seguiam seus maridos à guerra [...]fez-lhes nascer a idéia e forneceu-lhes ocasiões frequentes de escapar ao jugo de seus tiranos, buscando criar um lugar onde elas pudessem viver de forma independen[...]"( Condamine, 1981; 88) Nas representações binárias do mundo, é impensável mulheres que fazem a livre opção de viver entre si. A criação de un sentido que pudesse explicar esta escolha se impõe e será realizada em uma rede de representações de gênero que se imbricam , se negam e se afirmam em seu caminho secular. No decorrer das Luzes e da Revolução francesa, as indígenas guerreiras, altivas e livres são definitivamente realocadas no « sermo mythicus » , à uma ilusória anomalia dos afrescos desenhados pela natureza. Enterradas pelo discurso da razão, as Amazonas brasileiras se tranformam em mulheres infelizes que se escondem na floresta. Sergio Buarque de Holanda, historiador contemporâneo envia definitivamente as Amazonas brasileiras ao mito : para ele, o fato de ver mulheres guerreando ao lado dos homens podia criar a imagem das Amazonas : « "[...] de tal espetáculo, entretanto, onde pareciam misturar-se o real e o fantástico, devia nascer o ambiente propício ao mito." ." ( Holanda, 1969; 25) Para este autor, as histórias contadas pelos espanhóis não eram senão produtos típicos de um imaginário exacerbado pela busca do maravilhoso. As Amazonas foram assim então colocadas no mesmo campo de significação que a Fonte da Juventude, do Eldorado, dos monstros que habitavam a terra e os mares: “[..] em Quito, a Academia Real investiga a existência, em certas províncias destas 'viragos', capazes de se sustentar sem a companhia dos homens, salvo em certas circunstâncias." ( Holanda,1969; 25) Virago, « mulher com aparência masculina, maneiras rudes e autoritárias. V. dragão, gendarme »no informa o Petit Robert . ( Le Petit Robert, 1978; 2098). A referência é o homem para descrever estas mulheres : aparência masculina, cujas maneiras reproduzem a construção social generizada. Mulher-macho, paraíbas, lésbicas, poderíamos também dizer « butch », « dyke » ou outras denominações socialmente pejorativas. Com efeito as Amazonas, mulheres entre si evocam os costumes homossexuais das índias e num deslizamento de sentdo os julgamentos sobre umas transbordavam sobre as outras. Florestan Fernandes, por exemplo, nomeia as índias que escolhiam o papel masculina na sociedade com o epíteto « tríbades » ; cita os cronisstas que apenas descrevem sua existência e sua maneira de viver e acrescenta suas próprias considerações axiológicas : " Segundo esta fonte as mulheres tríbades assumiam as atitudes culturalmente definidas como masculinas [...] adotavam a forma masculina de penteado e contraíam núpcias como os homens [...]Adquiriam , pois, através destes conúbios, tôda espécie de parentesco adotivo e de obrigações assumidas pelos homens em seuss casamentos[...] Formalmente, porém, parece que este era simples recurso para atribuir status às mulheres que constituíam desvios psicológicos[...] ( Fernandes, 1989; 137-138) E acrescenta igualmente : "A avaliar pelas informações, esses desvios eram pouco frequentes e em algumas situações pelo menos, de acordo com as informaçoes de Gandavo, a sociedade resolvia o problema eliminando as mulheres tríbades. ( Fernandes, 1989; 138 ) Estas citações demonstram a interferência do quadro de representações de um autor sobre suas interpretações, ainda mais porque uma leitura atenta de Gandavo não permite de forma alguma chegar-se à conclusão da eliminação destas mulheres, nem mesmo que sua existência pudesse constituir um problema para a tribo. É o autor , no caso, acrescentando as soluções contidas em seu sistema de representação do mundo para a análise das relações indígenas : para o desvio, a eliminação. Doença, problema, as possibilidades infinitas da história das relações humanas são reduzidas assim à exclusões modernas ou aos eternos silêncios, sobretudo quando se trata de relations entre mulheres.[4] Por outro lado, as relações homossexuais entre homens são mais visíveis ou explicáveis. Florestan Fernandes ainda procura justificá-las pela necessidade : "Parece-me que as práticas sodomíticas dos Tupinambás devem ser encaradas em têrmos dessas dificuldades na obtenção de parceiras sexuais."[5] ."( Fernandes,1989; 136 ) Este é um discurso é um exemplo da naturalização do cultural : : a sexualidade é uma necessidade para os homens e esta explica e justifica qualquer prática fora do encontro heterossexual. Não precisavam ser banidos ou excluídos ou eliminados, apenas exerciam seu impulso « normal » que voltaria aos « canais competentes » assim que as circunstâncias se mostrassem favoráveis. Com efeito, a homossexualidade masculina faz parte da história conhecida sem que sua aparição modifique a ordem da representação binária dos gêneros. Afinal, entre os gregos O amor não era cultivado entre homens ? Neste sentido, o lesbianismo representa uma ameaça à ordem patriarcal, uma quebra no contrato heterossexual que resulta na apropriação física e emocional do corpo das mulheres num mundo definido pela polarização de gênero. As Amazonas, seres abomináveis, corpos perdidos em amores doentios, núcleos de perversão, caricaturas de um masculino « natural », visões improváveis e/ou impossíveis, mulheres infelizes, fugitivas de sua própria imagem, estas representações nos falam do medo do Outro. As Amazonas, tenham elas existido ou não, esta não é a questão. O que aqui importa é a possibilidade de sua existência, negada pela história em seus discursos marcados pelas representações de gênero. A História nunca foi o locus da verdade. Na divisão entre o real e o imaginário, decide sobre o que é admissível na espessura do real : aquilo que está contido nas representações disponíveis para a decodificação dos signos. Verdadeiro ou falso ? Temos apenas os índices do possível e o desejo intenso de re-pensar a história onde o recorte das relações humanas não seria nem eterno, nem necessário, nem natural. Onde as pessoas poderiam ser apenas humanos e não grupos sexuados, definidos nos limites impostos pelo poder. Bibliografia
Fontes cronistas: de la Condamine (1981) Ch. M..Voyage sur l"Amazone, Paris, Maspero, , p.84 Souza Gabriel Soares de (1971) Tratado descritivo do Brasil em 1587, SP, Ed. Nacional, , p. 302 e quanto Gandavo Pero Magalhães. (1964) História da Província de Santa Cruz. Tratado da terra do Brasil, SP, Ed. Obelisco D’Ábeville Claude (1945) História das Missões dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, São Paulo, Livraria Martins Editora, , Thévet André,(1983) Les singularités de la France Antartique- le Brésil des cannibales au XVIème siècle, Paris, Ed. La Découverte, __________________________ de Certeau Michel.(1982) A escrita da história , Rio de Janeiro, Ed. Forense. Freyre Gilberto.(1974( Maîtres et esclaves, la formation de la société brésilienne, Paris, Gallimard. Delumeau Jean.(1978) La peur en Occident. XIV/XVIIIè.siècle , Paris, Fayard. Holanda Sergio Buarque de, (1969) Visão do Paraíso, São Paulo, Ed. Nacional/USP. Fernandes Florestan. (1989) A organização social dos Tupinanbás., SP, Hucitec. Le Petit Robert, Moriconi, Italo Todorov.Tzvetan la tetteratura fantastica.Garzanti, Milano, 1977. Orlandi Eni Pulcinelli. (1993) Discurso Fundador, a formação do país e a construção da identidade nacional, Campinas/São Paulo, Pontes, Guareshi Pedrinho, Jovelovich Sandra Textos em representações sociais, Petrópolis/RJ, Vozes, 1994 Régine Pernoud. La femme au temps des cathédrales, Paris, Stock, 1980 Florestan Fernandes. A organização social dos Tupinambás, SP, Hucitec, 1989,p.137/137 Foucault[1]Michel (1984) .Histoire de la sexualité- l'usage des plaisir, Paris, Gallimard, , vol II, p.207 [1] Esta questão é trabalhada por Michel de Certeau. e por Haydn White para citar apenas dois autores. [2] As mulheres guerreiras foram numerosas, mas o discurso ofical das história apagou-as de tal forma que a idéia mesmo de sua existência parece estranha.Bodicéia foi por ex, foi uma rainha que defendeu suas terras ( Inglaterra)contra os romanos, Artemísia combateu os gregos aliada à Dario e Atalie aparece na Bíblia como rainha dos judeus, que como sua mãe, Jezebel, reintroduz entre eles o culta da Grande Deusa, Astarté. [3] A situação das mulheres no Ocidente não foi sempre tal como estamos acostumados a pensá-la e neste sentido, os estudos recentes sobre a época medieval por exemplo, mostram mulheres ativas no mundo do trabalho e na política. Régine Pernoud conta mais de 100 profissões exercidas pelas mulheres entre os séculos XIIe e XIV [4] ver por exe., Marie Jo Bonnet, Geneviève Pastre, Andrea Weiss e a bibliografia contida nestes livros |